Crescer na Periferia é uma Aventura


 Se você, como eu, cresceu em meio suburbano, posso afirmar com certeza que você teve sua primeira experiência com música clássica ainda criança, e foi com Pour Elise, de Beethoven. Se você não lembra, era a musiquinha que todo caminhão de gás deixava tocando no auto falante quando passava pelas casas das pessoas. Lembrou, né? É essa mesma. Ou então, se sua família é católica, você pode ter começado também com Ballade pour Adeline, de Richard Clayderman, mas com certeza lembra do caminhão de gás tocando Pour Elise.
  É engraçado como era sempre essa música. Provavelmente os homens que dirigiam esses caminhões na minha adolescência nunca perceberam naquela época como teriam ficado milionários se tivessem tocado qualquer coisa do “Exaltasamba”.
  E aí você comia o seu pão com manteiga e café com leite (ou leite com chocolate se a família tivesse mais finesse), no café da manhã. E quando saía para brincar era certeza que sempre ia dar de cara com algum par de tênis e rabiolas de pipas perdidas nos fios elétricos na rua. E tudo bem, todo mundo sabe como essas rabiolas foram parar lá. Agora, o que eu nunca consegui saber foi como aqueles tênis foram parar lá. Que raios era aquilo?
  Alias, outra coisa marcante era a quantidade de crianças soltando pipa que sempre teve em bairros de periferia no interior de São Paulo. Alias, a pipa nos ensinava as primeiras lições básicas de democracia e de como funciona a vida adulta: Tem as melhores pipas quem tem mais dinheiro. A criminalidade é alta, muitos moleques preferem o caminho mais fácil, que é usar as famosas linhas com cerol ou linhas chilenas para cortar os amigos e puxar seus tapetes. E por isso, quem era honesto tinha que ficar longe das pipas dessas pessoas. Por assim dizer, toda a sociedade que as crianças formavam em torno das pipas acaba ensinando a elas muito mais sobre vida financeira do que imaginamos. E vale mencionar que toda criança aprendeu suas primeiras lições de Parkour na raça correndo atrás de pipa que era dela e tinham cortado!
  E tinha aquela casa abandonada que sempre virava alvo de histórias das crianças, ou porque a casa é mal assombrada, ou por aquele monte de razões que só quando a gente é criança consegue saber de onde vem.
  E claro, todo bairro tinha que ter o famoso “Bar do Zé” ou  qualquer nome parecido que sempre recebia os pais de todo mundo quando tinha jogo do Corinthians, ou do time de futebol do dono, e dependendo do bar ainda tinha uma vitrola tocando uma série de músicas aleatórias do momento nos finais de semana e as vezes de noite. Mas as crianças raramente vão lá, a não ser que venda o famoso geladinho (ou gelinho, ou qualquer nome que deem na sua cidade para suco de fruta congelado vendido em saquinhos de plástico). E todo bairro tinha aquela criança com espírito empreendedor que começava a vender gelinho na própria casa. Investimento inicial: O dinheiro do pai, obviamente.
  E o que dizer da caminhonete que passava umas três vezes por semana vendendo uns líquidos coloridos em garrafa de refrigerante que o cara jurava que eram produtos de limpeza, mas que você nunca viu nenhum cliente do cara comprovar. E o mais engraçado é que você olhava para um garrafa com um líquido azul claro e lia, escrito sobre uma fita crepe colada na garrafa: “Sabão em Pó”.
  E claro, não vamos nos esquecer das inesquecíveis peladas que antes da meia noite significavam partidas de futebol de rua jogadas quase sempre por crianças com regras definidas pelas próprias. A lembrança mais forte que todo mundo tem disso são os gols montados ou com os chinelos de um dos meninos, com tijolos ou com qualquer coisa que tivesse por perto. De vez em nunca o pai de alguém improvisava um golzinho com pedaços de madeira, mas isso era raro. Ou, em determinadas situações, até o portão da casa de um dos jogadores podia ser gol. E como o jogo era na rua não dá para contar quantas bolas se perdiam quando caiam na casa de uma velha mal amada que sempre as furava, ou em casa com cachorro bravo que acabava com elas.
  E não tinha essa de o goleiro pedir para chutar leve não, moleque de perifa que é moleque de perifa mete o pé sem dó, então não era qualquer um que ficava no golzinho não! E não vamos nos esquecer de qual era o maior jogo do século: Os “Com Camisa” contra os “Sem Camisa”, muito mais clássico que qualquer final de Libertadores ou de Copa do Mundo!
  E a rua virava campo de guerra mesmo em todo primeiro de janeiro, quando as crianças iam todas pedir o famoso “Bom Princípio de Ano Novo”, que é basicamente ficar pelas ruas pedindo moedinhas aos transeuntes, pelo ano novo. Nossas primeiras noções de como pedir esmola. E normalmente a criança mais meiga e bonitinha voltava para casa com mais dinheiro que o pai no final do mês e corria o risco de ser acusada de roubar um mercado. Em alguns lugares também saiam pedindo doce no dia de São Cosme e Damião, a não ser que fosse família de crente, porque aí a mãe não deixava!

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  Esse texto é parte integrante do meu livro "Coisas que aprendi na Vida". Em breve aqui no Blog.

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