Pete e a Morte - Pete #03


   O Maurício me ligou bem cedo. Era Sábado, minha folga. E se tem uma coisa que eu odeio com toda a força da minha alma depois de azeitonas e álcool, é ter que acordar cedo. Eu tenho uma fisiologia de bebê nesse sentido: Se eu for acordado antes da hora meu corpo desregula todo. Mas bem, quando você é adulto e tem que obedecer ao sistema, seu corpo é o que menos importa.
   -Maurício, olha só, eu gosto para caramba de você e da Bete e gosto demais de ficar com o Pete, mas hoje é domingo, são seis horas da manhã e não tem absolutamente nada que você possa me dizer que vai me convencer a sair da minha cama!
   -Nada?
   -Nada.
   Ele passou o telefone para o Pete. Meia hora depois eu estava na casa deles.
   -Eu sabia que se o Pete pedisse você vinha! - Maurício abre a porta do apartamento sorrindo.
   -Tá vendo isso, Maurício? - Aponto para os meus olhos. - Se chamam olheiras.
   -O que você andou fazendo de madrugada?
   -Queria dizer que estava com uma mulher fazendo coisas que não posso contar na frente do Pete. Queria. Mas quem disse que a vida é justa? - Respondi, sem vontade.
   -Quando a Marina vem aqui... - Pete, se referindo a prima. - A gente brinca de esconde-esconde!
   -Ok, Maurício, agora temos um código quando ele estiver perto: Esconde-esconde!
   Em parte eu sabia o que o Maurício queria comigo no Sábado envolvendo o Pete. Ele sabe que sou professor e educador e toda vez que o Pete começa com alguma mania estranha ele me chama, como se eu fosse algum tipo de Sherlock Holmes de crianças. Teve uma época que ele insistia que queria ter um cavalo. Eu o convenci a pedir uma fazenda para o papai noel primeiro para colocar o cavalo nela. Ainda em outra época insistiu que o Maurício tinha que tomar vacina no dia seguinte, depois de ouvir no rádio que no dia seguinte iam estar vacinando de graça contra a raiva. Só esqueceu que era sobre os cães. Foram longos dias.
   -O que aconteceu hoje, Maurício?
   -A Bete está lá dentro se arrumando. Nós temos que ir a um velório hoje. E o Pedrinho é muito pequeno ainda. Nós explicamos a ele que o amigo do papai e da mamãe morreu, mas não sei se é legal ele ver o corpo sendo velado.
   -Concordo.
   Pete ia querer acorda-lo de algum jeito, na certa, seja fazendo cócegas nos pés do defunto, enfiando o dedinho no nariz dele, ou qualquer outra coisa que faria Maurício voltar para casa mais constrangido do que era capaz de conseguir sozinho. Mas falando sério, também não queria que o Pete tivesse que ver um corpo morto, se era possível evitar.
   -Olha, Maurício, eu faço pelo Pete! Mas convenhamos que você não me paga o suficiente para isso!
   -Ele não me paga também! - Denunciou o garoto.
   Aquela pausa dramática.
   -Eu prometo que te pago a mais por hoje!
   -Tá, e você quer que eu explique para ele o que está acontecendo? Digo, é a primeira vez que ele ouve falar sobre morte, não é?
   -Se você puder, a ajuda é bem vinda!
   -Certo, vou pensar em algo!

   * * *
   Eu podia ter feito tudo. Considerando que era um amigo da firma do Maurício que Pete não conhecia que morreu, eu podia até nem falar nada, mas achei que tinha um dever. Pete podia não ser muito inteligente, mas ele sabia que algo estava acontecendo.
   Mais tarde, achei por bem cortar as unhas da mão dele, que já estavam meio grandes. Coisa que o Maurício as vezes esquece de fazer. E a Bete, ocupadíssima com o trabalho dela também.
   -AAAAI!
   -Mas o tio nem encostou!
   -Mas vai machucar!
   -É algodão!
   E enquanto eu tentava cortar as unhas dele, driblando cada vez que ele tinha a sensação psicológica de eu estar arrancando o dedo dele fora, eu pensava numa forma de conversar com ele sobre isso, como prometi para o Maurício.
   -Você sabe porque o papai e a mamãe não estão aqui, né?
   -Ele foram ver o amigo deles.
   -Porque?
   -Ele estava doente.
   -E então?
   -Fizeram uma festa para ele!
   Ai, meu senhor jesus. Eu estava me esforçando, eu juro, mas assim ficava difícil.
   -Pete, seu papai está se despedindo do amigo dele.
   -Ele vai embora?
   -Vai.
   -Então a gente vai ganhar presente quando ele voltar?
   Agora entendemos porque o Maurício não lidava com a própria cria nessas horas. Bem, eu não ia perder para ele.
   -Pete, ele não vai voltar. Ele foi embora. Para sempre.
   -Ele não gosta do papai?
   -Gosta, Pete! Gosta muito, mas... Ele teve que ir. Ele morreu, Pete. As vezes, quando os adultos ficam doentes por muito tempo e não conseguem ficar bem, se demoram muitos dias, eles podem acabar dormindo e não conseguir mais acordar. E aí, a gente tem que fazer uma "festa" para se despedir. Porque quando isso acontece, depois de um tempo eles somem, e a gente não pode fazer eles voltarem. É por isso que a gente tem que cuidar o máximo possível de quem a gente gosta! - Sorri. - Entendeu?
   -Então... Se não cortar minha unha eu vou sumir também?
   Prostituta que pariu, Pete!
   -Não, Pete! Sem isso você só vai ficar feio! Mas, mesmo se só ficar doente não é bom, não é? É por isso que você tem que obedecer o papai e a mamãe sempre! E o tio também!
   Apesar de tudo, acho que ele entendeu. Depois daquela conversa, consegui terminar de cortar as unhas dele com certa facilidade. Não reclamou muito. Acho que ficou pensando no que nós dois conversamos.
   No fim do dia, Maurício e Bete voltam para o apartamento e nos encontram jogando videogame, depois de ele fazer todas as tarefas, almoçar a comida que Bete deixou pronta para esquentar no microondas, de eu fazer ele arrumar o quarto dele na medida em que podia, enfim, de um dia corrido para os dois. Pete se levanta e vai até os dois antes que eu possa dizer qualquer coisa:
   -Trouxe bolo da festa, pai?

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