Pete e a dona Morte - 1 de 2 - Pete #09


   Eu já tinha passado por muita coisa com o Pete, mas jamais, nem nos meus sonhos mais malucos eu poderia sequer imaginar que a gente ia viver algo sobrenatural. Quando cheguei para trabalhar aquele era um dia comum e eu já me preparava mentalmente para viver mais um doloroso dia com as idéias do Pete.
   -Tem comida no microondas, tá? Não esqueça de mandar ele arrumar o quarto dele também, e não deixe ele ficar muito na televisão! É sério, eu não confio naquela porquinha!
   Perfeitamente compreensível. Quem é que confia em porcas com formatos duvidosos e galinhas avatares para distraírem crianças? De jeito nenhum, vamos deixar com os quatro ETs coloridos, porque minha época é que era melhor!
   -Tudo bem, pode deixar!
   -Tá bom, então até a noite!
   O primeiro passo do meu dia seria leva-lo para a creche, visto que quando o pegava com o Maurício ele já estava arrumadinho e com o cabelo penteadinho, me livrando dessa parte. Depois volto para o apartamento. Podia ficar vendo TV ou consumir toda a geladeira por conta deles, mas, por uma questão de amizade com o Maurício e de cortesia pelo privilégio que era poder cuidar do Pete, apesar do trabalho que sempre me deu e das confusões que sempre me colocou, eu adiantava um pouco as tarefas do apartamento e lavava a louça, varria o apartamento e arrumava as coisas para eles. Depois disso, voltaria para pegar ele na creche. Ao chegar no apartamento de volta, mandaria ele ir se trocar e aproveitaria para esquentar o nosso almoço no microondas. Almoçaríamos juntos. E daí para frente, era distrair ele com qualquer coisa até o Maurício chegar do trabalho. Falando assim parece simples, mas todos os dias quando chegava em casa simplesmente mal me aguentava em pé.
   Mas tudo começou logo cedo quando eu estava levando o Pete para a creche. Ele como sempre estava agitado no banco de trás. Uma coisa sobre crianças: São os únicos seres que conseguem estar animados numa segunda feira as sete horas da manhã sem que isso se deva a problemas mentais ou uso de drogas.
   -Ta ansioso para escola hoje, Pete?
   -Hoje tem parquinho no segundo horário!
   -Será que vai ter comida boa hoje?
   -Eu espero que não tenha polenta!
   Pete realmente era meu orgulho! Eu também sempre detestei polenta!
   Mas de repente, tudo a nossa volta parou de um jeito inesperado, como se o tempo tivesse parado e não conseguíamos mais ouvir nada. Todos os carros pararam e na rua, nenhum pedestre se mexia. Uma senhora até travou na cara de peixe quando pronunciava um som de "a" ao celular.
   -Pete, você está bem? - Perguntei, com medo de algo ter acontecido com ele.
   -Que engraçado, todo mundo tá brincando de estátua! Mas... Quem congelou eles? Ah, acho que foi ele! - Apontou para frente.
   Gelei mais que a Elsa de Frozen quando olhei para onde ele apontou. Bem na frente do nosso carro, um ser alto com um enorme roupão preto, uma mão de ossos segurando uma foice. E olha que eu até que acreditava em Deus, mas aquilo era ridículo. Ainda olhei para os lados para ver se tinha alguma câmera. Não vi nada.
   -Você sabe quem eu sou, né? - Perguntou impaciente.
   -Talvez a prova de que cuidar do Pete anda sendo demais para a minha cabeça!
   -Ah, ele é engraçado! Parece que saiu de um gibi!
   -Eu não sou mulher e não moro em cemitérios, moleque! Me respeita! - Resmungou.
   -Olha, eu acho que é um engano, eu estava andando a quarenta, porque nós estamos adiantados e eu sou vegetariano e minha saúde é boa, então acho que realmente não tá previsto para eu morrer! E o Pete, bem... Ele só tem seis anos, então, né? - Risada discreta de nervoso. - Deve haver algum engano!
   -Eu rezo todos os dias por um que só cale a boca e aceite, mas nãããão! - Reclama, com a mão no rosto. - Olha só, desde que o mundo é mundo a morte não erra, tá legal? O sistema é esse moço, não tem como falhar! Sai do carro e vamos, por favor!
   -Você não pode conferir de novo, olhar nos papéis? É que eu sou cuidador do garoto aqui e se eu não voltar com ele vivo o pai dele me mata!
   -Você realmente não entendeu quem eu sou, né, moço?
   -Só uma tentadinha! - Pedi.
   -Vai congelar a gente ou não vai? - Reclamou o Pete, fazendo bico e de braços cruzados no banco de trás. - Eu quero brincar também!
   -Moço, isso aqui não é o escritório do SUS que todo mundo leva tempo a acreditar quando o dia chega. Entenda como quiser. O ponto é que isso é sério e eu trabalho nisso desde que o mundo é mundo e nunca nada deu errado com a papelada! Vamos logo!
   -Tá bom!
   A Morte teve um alívio que quase pareceu um orgasmo com aquilo. Acho que as pessoas não costumavam ser tão resignadas e aceitar tão fácil que iam morrer. Mas era aquilo. Então apenas virei para o Pete.
   -Para todos os efeitos, eu te perdoo por tudo, e espero que me perdoe por todas as vezes que eu quis avançar no seu pescoço, te estapear até a morte, esfregar sua cara na parede e coisas assim! Foi muito bom cada minuto com você! - Uma lágrima desceu, confesso.
   Saí do carro e o trouxe para fora pela mão. Ele conseguiu sentir minha tristeza e não disse mais nada sobre a tal brincadeira de estátua.
   -Eu te amo como se fosse meu filho, Pete!
   -Eu também te amo, tio! - Respondeu, mesmo sem entender completamente o que estava acontecendo.
   Então me abaixei e o abracei.
   -Pode ir! - Avisei para a Morte.
   -Pois bem! - Ela levantou a foice. - Até que enfim vou conseguir voltar cedo para casa!

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