Pete e as Palavras - Pete #02


   Foi no ano retrasado isso. Nessa época, o Maurício trabalhava das 06h as 15h, mas fez a proeza de não conseguir matricular o Pete em tempo integral. Resultado: Eu tinha que levar e buscar o Pete na creche. Provavelmente toda a vizinhança lá deveria achar que eu é que era o pai dele, porque foi quase o ano inteiro assim.
   Nessa época, com quatro anos, Pete ainda estava aprendendo a falar direito, sem trocar sílabas, largando a famosa "língua de bebê". Ele tinha quatro anos. Foi quando aconteceu uma coisa no mínimo bizarra:
   Numa das vezes em que fui busca-lo, encontro a diretora com a cara mais carrancuda que já vi. Fiquei apreensivo até a tampa, porque o que quer que o Pete tivesse feito, eu ia ter que explicar para o Maurício depois.
   -O senhor pode vir conversar comigo na minha sala, por favor?
   -Ele jogou um avião em um prédio, ou algo assim?
   -O que?
   Ok, vamos admitir, eu não sei quebrar o gelo. Definitivamente não.
   Caminhamos em silêncio. Ela se sentou em sua cadeira. A professora do Pete nos aguardava com ele, e não parecia menos prostituta da vida com o moleque. Acho que nem Kin Jon Gun na frente do Trump ia ficar tão nervoso quanto eu nesse dia.
   -O Pedrinho... Não sei que tipo de mau exemplo ele tem em casa. - Me fuzilando com o olho esquerdo e metralhando com o direito. - Mas ele disse por várias vezes que eu, a professora, o professor de educação física, enfim... Ele disse que todo mundo... Bebe. O que o senhor pode nos dizer sobre isso?

   * * *
   Assim, a culpa pode meio que ser minha na verdade. Começou a um tempo atrás, quando ainda ficava com ele por algumas horas nos finais de semana. Um belo dia, um amiguinho dele bateu na porta do apartamento, trazendo um brinquedo qualquer nas mãos e chamando ele para o apartamento ao lado. Filho de conhecidos em quem Maurício confia.
   Entrei novamente e fui chama-lo. Foi aí que uma coisa acendeu na minha cabeça: Uma ideia para brincar um pouquinho com ele!
   -Pete, tem um mancebo aqui atrás de você!
   Ele fez uma cara de não entender o que eu estava dizendo.
   -E... Isso móide? - Respondeu, num misto de medo e curiosidade.
   -Acho que não, ele pareceu bem simpático! Não acho que vai te morder!
   -Como ele é?
   -Sei lá, eu achei ele normal!
   -Ele tem dente gandi?
   -Eu não olhei os dentes dele, mas ele não é assustador! Porque não vai lá ver ele?
   Se levantou do tapete, largou os brinquedos e foi bem devagar. O medo lutando contra a curiosidade, mas no final, a segunda sempre vence. O que ele não sabia é que "mancebo" é o mesmo que "jovem, garoto, menino". Ou seja, o "mancebo" na verdade era o amiguinho dele esperando na porta para brincar!
   Ele ficou de cara fechada para mim o resto do dia, mas que foi engraçado, como foi!

   Depois desse dia, vendo que ele só caiu nessa uma vez e depois começou a usar a palavra que eu ensinei, eu comecei a ensinar mais palavras difíceis para ele. Sabem como é, escritor e professor, isso meio que ajuda a ter um bom vocabulário. E ele começou a aprender várias. Eu só esqueci de ensinar ele a parar. E foi isso que aconteceu.

   * * *
   Contei essa história para a diretora na maior cara de pau, constrangido da garganta até o reto em admitir aquilo.
   -Na verdade, quando ele aprende uma palavra nova, ele gosta de usar até cansar. Ontem ele viu que eu fiz a barba, e eu disse para ele que agora eu era "imberbe". Entende? Ele não queria dizer que vocês bebem, e sim que vocês são imberbes, vocês não têm barba!
   -A tia bebe! - Balbuciou ele. - Não tem báiba que nem o tio!

   Ela ficou muda por alguns instantes sem saber o que falar. Pete olha para mim:
   -Eu tenho que tegivesá, tio?
O universo estava de conluio contra mim, só pode!

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Só para explicar que "Tergiversar" significa pedir desculpas.

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